A plataforma MUBI exibe “April” (2024), dirigido pela georgiana Dea Kulumbegashvili e produzido pelo italiano Luca Guadagnino (“Me Chame Pelo Seu Nome”). O filme ganhou um Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza em 2024, é uma das melhores obras que vimos nos últimos tempos e não posso recomendá-la mais.

“April” se passa no interior da Geórgia (a ex-república soviética, não o estado norte-americano) e conta a história de Nina (a arrebatadora Ia Sukhitashvili), uma obstetra que realiza partos num hospital legal e, nas horas vagas, anda por vilas pobres da região fazendo abortos.

O aborto é ilegal na Geórgia e Nina arrisca o emprego – e a vida – para ajudar a mulheres que estão em gravidez de risco ou que não querem ter os filhos com medo da repercussão nos lugares miseráveis em que vivem.

Mas que ninguém espere um filme com uma personagem ativista e perfeitinha, modelo de virtude e retidão. Nina é uma mulher admirável à sua maneira, que tem consciência dos riscos que corre ao burlar a lei. Não é o arquétipo da heroína hollywoodiana, mas uma pessoa de carne e osso, cheia de problemas e traumas.

A médica anda de carro pelas vilas, escolhendo homens a esmo para fazer sexo dentro do automóvel ou no mato. É um hábito arriscado, especialmente num lugar onde os índices de feminicídio são altíssimos e onde impera um forte moralismo religioso. Nas consultas, Nina conversa com as pacientes, meninas de 15 ou 16 anos cujas famílias não permitem que elas estudem para que se dediquem a ter filhos, e sentimos todo o peso da ignorância e da misoginia do lugar.

“April” tem estética e narrativa bem peculiares. O fotógrafo georgiano Arseni Khachaturan capturas imagens lindas das paisagens nada exuberantes e muito áridas da região, e o filme usa câmera estática e planos longuíssimos para ressaltar a monotonia de um lugar onde o tempo parece parado.

Não é um filme fácil. Dea Kulumbegashvili, em seu segundo longa (o primeiro é “Beginning”, que não vi, mas verei correndo) tem a segurança de uma cineasta veterana e não se furta a submeter o espectador a dez minutos de uma cena parada se isso servir ao propósito estético do filme. E serve. “April” é um desses filmes, cada vez mais raros, que traz uma marca pessoal muito forte de sua criadora.Um ótimo dia a todas e todos.