ago/2021

“Planeta Água” vs. “Purpurina”: 40 anos da batalha do pop contra a MPB

Por André Barcinski

“Planeta Água” vs. “Purpurina”: 40 anos da batalha do pop contra a MPB

Por André Barcinski

Em 12 de setembro de 1981, um evento marcou a história da música pop no Brasil: a derrota da canção “Planeta Água”, de Guilherme Arantes, para “Purpurina”, interpretada pela cantora Lucinha Lins, no festival MPB Shell, transmitido pela TV Globo. Na época, pouca gente percebeu, mas aquela disputa simbolizava um racha na música brasileira: de um lado, o novo pop das rádios FM; do outro, a velha MPB das AMs.

Em meu livro “Pavões Misteriosos”, contei a história daquela noite e suas implicações:

Quando a atriz Christiane Torloni anunciou a música vencedora do Festival MPB Shell 1981 – “Purpurina”, interpretada por Lucinha Lins –, o Maracanãzinho veio abaixo. Mais de 25 mil pessoas iniciaram uma vaia monumental, que se prolongou por quase dez minutos. Os milhões de telespectadores que assistiam ao festival pela TV Globo viram Lucinha Lins, bastante abalada, tentar cantar a música vencedora, mas tendo a voz soterrada pelos gritos da plateia. O público havia escolhido sua canção favorita – “Planeta água”, com Guilherme Arantes, e não perdoou o resultado.

Composta pelo gaúcho Jerônimo Jardim, “Purpurina” era uma música lenta e romântica, com um bonito arranjo de piano. Nas eliminatórias, chegou a ser aplaudida pelos jurados. Lucinha interpretava em um tom intimista, quase sussurrado. Já “Planeta água” era diferente: um baladão alegre, de tema ecológico e refrão bombástico, que Guilherme Arantes cantava com empolgação. Em seu piano, ele abria a canção de forma contida, mas avançava com um crescendo, até explodir no refrão, feito para ser entoado por uma grande plateia.

A disputa entre “Purpurina” e “Planeta água” simbolizou um racha que chegava ao auge exatamente naquele início dos anos 1980: a briga entre a “velha” MPB de origem bossa-novista e o “novo” pop brasileiro. Lucinha Lins e Guilherme Arantes encarnavam os estereótipos de cada estilo: ela, uma linda, fria e elegante crooner, apresentando uma canção sofisticada e apolínea; ele, um jovem rebelde de cabelos desgrenhados e pinta de galã teen, enchendo o peito para cantar uma música de letra simples e forte apelo pop. Essa “briga” não se limitava às arquibancadas do Maracanãzinho, mas chegava também às ondas do rádio, onde o velho domínio das estações AM estava sendo destruído por uma revolução jovem: as FMs.

A popularização das rádios FM, no fim dos anos 1970, mudou a indústria da música no Brasil. Até então, as AMs dominavam, com suas programações pré-gravadas e poucas intervenções de locutores. Quando as FMs surgiram com força – um marco foi a estreia da Rádio Cidade, no Rio, em 1977 – tudo mudou: o estilo de locução passou a ser mais solto e descontraído, e a programação privilegiava a música jovem. As FMs tocavam, basicamente, pop-rock: Guilherme Arantes, Pepeu Gomes, Rita Lee, Fagner, Queen, Michael Jackson, Kim Carnes, A Cor do Som. Segundo a revista Veja (edição de 27/7/1984), nas grandes cidades brasileiras, mais de 70% do público entre 15 e 29 anos ouvia FM. Esse número caía para 22% entre ouvintes mais velhos, na faixa de 40 a 65 anos. FM era coisa de “moçada”.

A primeira emissora em FM no Brasil foi a Rádio Imprensa, no Rio de Janeiro. Em meados dos anos 1950, a Imprensa transmitia programação musical exclusivamente para consultórios e lojas. Até 1974, havia cerca de quinze emissoras FM em operação no país. No fim da década de 1970, elas já chegavam a quatrocentas. Como as FMs transmitiam em estéreo, com qualidade de som superior à das outras frequências, obtiveram sucesso imediato. Os fabricantes de aparelhos de som passaram a colocar no mercado cada vez mais equipamentos com receptores de FM. No início dos anos 1980, quase 80% da frota brasileira de automóveis já estava equipada com rádios FM.

As emissoras FM, como a Cidade, no Rio, e a Bandeirantes e a Jovem Pan 2, em São Paulo, inovaram na linguagem radiofônica, com locutores que falavam gírias e uma programação focada em música jovem e comercial. Guilherme Arantes foi um dos maiores beneficiados, como ele mesmo recorda: “Quando a Rádio Cidade dominou a cena, lançou muita gente: eu, A Cor do Som, Geraldo Azevedo, Simone, todo mundo tocava bem na FM. Tinha também a linha nordestina do Fagner, que tocava muito. O pop brasileiro era muito bem-feito naquela época”.

Enquanto as FMs abraçavam o novo pop brasileiro, as AMs continuavam tocando MPB, música romântica, brega, samba e sertanejo. Criou-se uma barreira invisível que dividia os dois “Brasis”: o jovem e o velho. Guilherme Arantes conta que alguns artistas mais antigos tiveram dificuldade em migrar para as FMs, como Chico Buarque e Roberto Carlos, que demoraram a se adaptar ao tipo de som exigido pelas novas rádios. “Já o Gil, ele fez Realce em Los Angeles, um disco muito bem-produzido, com uma sonoridade moderna, e foi um dos primeiros caras da AM a migrar para a FM. A Rita Lee também conseguiu”, diz Guilherme Arantes. “Essas questões tecnológicas parecem cosméticas, mas a verdade é que a tecnologia acaba sendo mandatória. Ela passa na frente das coisas. Às vezes, a gente analisa os aspectos artísticos e estéticos, mas esquece que, no fundo, o que existe é a migração tecnológica. E, como acontece depois de toda migração, muita gente ficou pra trás.”

Em 1987, seis anos depois do embate entre Lucinha Lins e Guilherme Arantes, alguns desses artistas que “ficaram para trás”, jogados de escanteio pelas FMs – Silvio Brito, Ronnie Von, Alcione, Jair Rodrigues, Vanusa, Luiz Ayrão e Chitãozinho e Xororó –, se reuniram em um especial na TV Bandeirantes em homenagem ao cantor Antonio Marcos. Um dos cantores mais populares do Brasil na década de 1970, com sucessos como “Homem de Nazaré” e “Como vai você”, Antonio Marcos passava por um momento difícil, devido a problemas com drogas e álcool.

Um dos convidados do programa era Moacyr Franco, que aproveitou a ocasião para lançar uma música chamada “AM”. Diante de um auditório lotado, Moacyr fez um discurso apaixonado contra as rádios FM, intercalado por lágrimas: “Algumas canções fizeram sucesso porque vocês as ouviram, porque a rádio permitia que vocês as escutassem […]. Hoje, a rádio, especialmente a FM, se especializou em um tipo de música e afastou completamente gente como Ângela Maria, Miltinho, Pery Ribeiro, Sílvio César, Maria Creuza, Luis Vieira, Nelson Ned, Agnaldo Rayol e Agnaldo Timóteo”. A canção “AM” era um lamento, uma evocação quase religiosa dos tempos passados: “Pai, o teu silêncio me apavora/ Pai, eu quero uma resposta agora/ Pai, quem é que mata esse gigante?”. No fim do show, Antonio Marcos, visivelmente debilitado, subiu ao palco para cantar com os amigos. Ele morreria cinco anos depois, de insuficiência hepática.

19 comentários em "“Planeta Água” vs. “Purpurina”: 40 anos da batalha do pop contra a MPB"

  1. Denise Khauam Colaço Musegante disse:

    Meu Deus! Tudo isso aconteceu e nós jovens na época ficávamos reféns das modernidades mesmo!
    Em 81 eu tinha 15 anos e vivi toda essa narrativa! André, que fatos top da nossa vida!!

  2. Luciano J. G. Souza disse:

    Por um momento acreditava que as rádios FM foram incentivadas a tocar músicas internacionais para ser um motivo a silenciar artistas musicais incômodos ao regime militar.
    Eu era criança nesta época do festival, inclusive meus pais compraram o disco, e que apesar de não ter sido a campeã, “Planeta Água” realmente é sucesso até hoje.

  3. Magno Ulisses disse:

    Guilherme Arantes com toda razão aponta o avanço tecnológico, acima de qualquer movimento artístico, como o grande indutor de mudanças nas artes e na música popular especialmente. Você já escreveu sobre isso, como as músicas hoje são compostas com base em algoritmos e formatadas e gravadas tendo em vista as mídias sociais. Tenho conta no Tik Tok e já prevejo que as músicas no futuro terão a duração de 60 segundos no máximo, mais do que isso essa geração atual muda de vídeo.

  4. Maurilio César disse:

    Adoro rádio. Mas é difícil uma programação bacana.
    Tinha desistido, ai achei uma estação sensacional : WFMU. Muita música (inclusive brasileira) , DJs (voluntários) que sabem do que estão falando, dá para ouvir quase toda a programação de boca aberta. Já ouviu ?

    1. André Barcinski disse:

      Sei da WFMU, mas não sou ouvinte. Vale?

  5. Nísio Teixeira disse:

    Boa tarde André!
    Mais uma vez, excelente texto! Sobretudo pela relação entres bastidores da indústria musical, festivais e as rádios. Tenho pesquisado esse cenário das FMs que descreve em BH, com o auxílio luxuoso de profissionais da área e estudantes. Deixo dois artigos aqui sobre dois exemplos importantes da capital mineira:
    A Rádio Inconfidência FM – Brasileiríssima
    https://portalintercom.org.br/anais/nacional2019/resumos/R14-2256-1.pdf
    A Radio Geraes FM
    http://www.intercom.org.br/sis/eventos/2020/resumos/R15-1457-1.pdf
    Espero que apreciem!

    1. André Barcinski disse:

      Muito obrigado pelos links!

    2. Paulo Azevedo disse:

      Ler sobre a história da Geraes FM dá até uma pontada no coração.
      Essa rádio fez parte da minha vida. Parabéns, excelente trabalho.

  6. Henrique disse:

    Comecei a ouvir rádio no meio dos anos 80. Não tinha muita ideia dessa ruptura, pois já comecei ouvindo as FMs. AM para mim era só por causa do futebol. Hoje FM virou rádio de notícia e…futebol. Acho que talvez hoje eu seja o que eram os defensores da AM no início dos 80. Tenho excelentes recordações radiofonicas entre 85 e 2005, mais ou menos.
    Adorei o texto e vou comprar o livro assim que for lançado novamente.

  7. Pedro Galvão disse:

    maravilhoso texto. Lembro o inicio da Jovem Pam 2 com os locutores e os programas de humor escrachado era a inovação da época…hj no radio sinto falta da “curadoria” que certos programas faziam, como o garagem e outros.

  8. João Gilberto Monteiro disse:

    Texto muito interessante André, e para ver como o mundo dá voltas: Atualmente, com a crise cada vez mais perene das rádios, algumas FMs, para diminuir despesas, estão iguais as AMs dos anos 1970, com poucos (ou nenhum) locutor(es) e as músicas pré-gravadas, eu na verdade, até prefiro assim do que com os falatório interminável dos locutores.

    1. André Barcinski disse:

      Eu gosto de alguma locução, fica mais humano. Mas sem exageros…

  9. Fábio Camargo disse:

    Excelente texto André, como sempre. Essa disputa da década de 70/80 entre os artistas de AM/FM me faz pensar num paralelo com a atual conjuntura política no Brasil, e chego à conclusão que no Brasil, o “velho” sempre vai lutar pra manter o “status quo”, custe o que custar, à despeito de tudo de novo que possa estar surgindo. Como dizia Cazuza: “Eu vejo o futuro repetir o passado/Eu vejo um museu de grandes novidades”. O brasileiro médio é conservador até debaixo d’água.
    PS: Quando sai a nova edição de “Pavões Misteriosos”? preciso ler esse livro.

    1. André Barcinski disse:

      Acho que daqui a uns 45-60 dias…

  10. Andrioni disse:

    Barça, não tem o que falar desse teu texto, impecável.
    Obrigado por mais esse!

    Off topic: No B3 quando vcs falam de algum artista, ou música, não tem como colocar pelo menos um trecho do som pra ilustrar? Ou o bate papo é informal (como parece mesmo) e os temas vão surgindo na hora?

    1. André Barcinski disse:

      Cara, pra vc ter ideia, a gente decide o tema na hora.

  11. André Luiz Antunes de Oliveira disse:

    Grande história. Vc só citou grandes artistas. Uma pena ter tido essa segregação na época. O tempo cuida de colocar os artistas, ditos bregas, em seu devido lugar de destaque na música. Triste que alguns não viveram o suficiente para esse reconhecimento. Xará, tem há possibilidade de relançar o “pavões misteriosos”? Abraço

    1. André Barcinski disse:

      Acabei de fechar com uma editora, “Pavões” será relançado em uns 60 dias. Abraço!

      1. André Luiz Antunes de Oliveira disse:

        Aeeeeeee, que demais!!!

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