
Cem anos sem Joseph Conrad
Józef Teodor Konrad Korzeniowski teve uma vida e tanto: nasceu em 1857 na Ucrânia, em território que pertencia à Polônia. Filho de um ativista político, viveu em muitos países por força da perseguição ao pai e depois teve uma longa passagem trabalhando em navios e viajando por todo o mundo. Essas aventuras, Joseph Conrad levou para seus livros mais famosos, como “O Coração das Trevas”, “Nostromo” e “Lord Jim”.
Em 2024, completam-se 100 anos da morte de Joseph Conrad, que morreu aos 66 anos na Inglaterra. Escrevi para a editora Nova Fronteira um prefácio para uma nova edição do maior clássico do autor: “O Coração das Trevas”.

Imagino que muitas pessoas da minha geração se interessaram em ler “O Coração das Trevas” depois de ver “Apocalypse Now”, o clássico filme de guerra de Francis Ford Coppola inspirado no livro de Joseph Conrad. Foi meu caso. Li pela primeira vez adolescente, e lembro o impacto de tentar visualizar as imagens descritas nas páginas: o barco navegando lentamente por um majestoso rio africano ladeado por uma floresta impenetrável; a cortina de neblina que cai sobre o rio, impedindo a visão e dando ao cenário um aspecto fantasmagórico; a chuva de flechas que parecem cuspidas da própria mata; cabeças decepadas usadas como ornamentos de cercas.
Para um leitor de 16, 17 anos, “O Coração das Trevas” é um misto de história de aventura e fábula de terror. O tom anticolonialista é evidente, e as descrições das desumanidades perpetradas pelos brancos são aterrorizantes. O fato de o narrador, Charles Marlow, estar sentado com amigos, relembrando suas aventuras na selva, confere à narrativa uma atmosfera lúdica, como se estivéssemos em volta de uma fogueira, ouvindo uma antiga história da boca de um velho contador de lendas. Ler frases como “À noite, às vezes, o rolar de tambores por trás da cortina de árvores subia o rio e ficava parado, fraco, como que pairando no ar muito acima de nós, até o primeiro romper da aurora” e “Éramos viajantes errantes numa terra pré-histórica, numa terra que tinha o aspecto de um planeta desconhecido” mexeu com minha cabeça.
Relendo o livro depois de muitos anos, percebi elementos que me haviam escapado antes. Mais importante que a trama – um marinheiro enviado por uma empresa de exploração de marfim para resgatar, em um posto localizado nas profundezas da floresta, um certo Sr. Kurtz, funcionário exemplar e que, dizem, está doente – é a jornada pessoal de Marlow. Durante toda a leitura, fiquei imaginando o que deveria estar passando pela cabeça do narrador durante a longa travessia rumo à escuridão e ao desconhecido da floresta: “O que estou fazendo aqui?” O que estamos – nós, os brancos – fazendo aqui? O que nos move a conquistar essas terras ‘bárbaras’? Será apenas o lucro prometido pelo marfim, ou existe um chamado maior, uma epifania que nos move a dominar outros homens e outras terras?”
O curioso é que, ao longo do texto, Joseph Conrad parece pontuar a narrativa com alguns comentários até irônicos, que contradizem a própria história contada por Marlow: “As histórias exageradas que contam os homens do mar têm uma simplicidade direta, cujo sentido cabe numa casca de noz.” Será mesmo? O que Marlow diz cabe numa casca de noz? Talvez a trama caiba, já que o enredo de “O Coração das Trevas” não poderia ser mais simples (e é evidente que Coppola, ao adaptá-lo em “Apocalypse Now”, teve a preocupação de “apimentar” a trama com mais acontecimentos espetaculosos, incluindo o próprio destino de Kurtz), mas os questionamentos que a história faz são, de fato, imensos.
Fiquei imaginando também o impacto que a leitura do livro deve ter causado em gerações anteriores à minha, especificamente na geração de Coppola, que era adolescente no fim dos anos 1950 e pegou toda aquela geração beat de Kerouac, Burroughs e Ginsberg, que leu “On the Road” e “Uivo”, que lia Hesse, Salinger e Castañeda, e para quem “Coração nas Trevas”, mesmo lançado muito antes, em 1899, deve ter soado incrivelmente atual nos anos 1960, com os Estados Unidos em sua marcha imperialista no Sudeste Asiático replicando o colonialismo europeu na África no século 19, e a contracultura questionando tudo.
Outra imensa surpresa que tive ao reler o livro foi encontrar, no meio das memórias de Marlow, uma frase que deu título a uma de minhas músicas prediletas: “Vivemos, como sonhamos… sós…”, inspiração do grupo de pós-punk britânico Gang of Four para a canção “We Live as We Dream, Alone”. Corri para a letra da música e me deparei com versos como “A terra de ninguém envolve nossos desejos”; “Não nascemos em isolamento / mas, às vezes, é o que parece”. E a música ganhou, para mim, um significado ainda mais profundo.
Uma ótima semana a todas e todos.
15 comentários em "Cem anos sem Joseph Conrad"
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li faz um bom tempo, clássico absoluto. vou reler, valeu!
Nunca li o livro, vacilo meu, vou atrás dessa edição com o seu prefácio.
Muito legal o texto sobre O coração das trevas. O Conrad tem muitas obras que foram publicadas no Brasil e que estão fora de catálogo há priscas eras. Um desses livros que merecem uma reedição é Under western eyes.
Gosto muito de “Lord Jim” também.
Nunca li, mas sempre tive muita vontade. Vou procurar uma edição bacana e resolver essa pendência.
Depois diz o que achou, deve ser mole encontrar uma edição baratinha.
Andre bom dia. Estou esperando ansioso pelo encontro com criaturas notáveis. Descobri seu trabalho esse ano e dês de então tenho tentado acompanhar. Quando tiver condições quero adquirir pavões misteriosos e barulho. Coração das trevas esta na lista de leitura. Abraço.
Muito legal, Fellipe, espero que goste!
Fala André! Era o livro preferido do Anthony Bourdain, uma obsessão. Aproveitando o Copolla, vai escrever sobre “Megalópolis”? Grande abraço.
Tô em SP, vou conseguir ver “Megalópolis” hoje, escrevo pra sexta!
Vi ontem, boa sorte rs
Pois é, já estou me preparando pro pior!
Também estou curioso para ler sua opinião sobre o filme que talvez seja o ultimo do Copolla.
Vejo entre hoje e amanhã, escrevo pra sexta!
Bem lembrado!
Bourdain cita Conrad em alguns episódios. Logo no começo do Parts Unknown Ep. Congo, ele já mete uma citação do Coração das Trevas.
Valeu!